Abrace o Cristo Pobre
A Espiritualidade de Santa Clara de Assis (*)
Por Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
1. O "Ponto de partida"
Na sua segunda Carta a Inês de Praga, Santa Clara fez uma exortação premente: "Não perca de vista seu ponto de partida" (2CtIn 11).
Para entender toda a força do que ela quis dizer, é preciso ter em conta que essa carta era uma resposta a uma questão também premente de Inês sobre o que deveria fazer diante de uma ordem recebida do papa para que tivesse propriedades.
Para Clara, não era uma questão simples. Para ela, não querer ter propriedades não era uma veleidade: estava no núcleo de seu compromisso de amor pessoal com Jesus Cristo. Alguns anos antes, quando o papa Gregório IX quisera forçá-la a ter propriedades e chegara a dizer: - "Se o seu problema é o voto de pobreza, você sabe que eu sou o papa e posso dispensá-la", ela dissera com firmeza: - "Não me dispense de seguir o meu Senhor Jesus Cristo!". Não se tratava de nenhum voto formal de pobreza, mas de viver como Jesus, de ter "os mesmos sentimentos de Jesus, que não se achou grande por ser Deus: pelo contrário, esvaziou-se até ser encontrado como um servo, como um de nós, para nos salvar" (cf Fl 2).
Desde o começo, é importante deixar bem claro um dos fundamentos da espiritualidade francisclariana: Por que Clara, como Francisco, quer seguir os passos de Jesus Cristo, crucificado e pobre?
São João disse que "Deus é Amor". Ou Deus é o Amor? São Francisco diz que Deus é o Bem, todo o Bem, o sumo Bem ... É outra maneira de dizer que "Deus é o Amor".
Amar é dar-se. Quando nós amamos, nos damos à pessoa amada. Mesmo pensando que esse dar-se vai até o fim da vida, sabemos que nunca vamos nos dar totalmente, porque nunca chegaremos - pelo menos nesta terra - a nos conhecer inteiros, nem a conhecer a pessoa inteira para nos dar a ela inteira. Mas Deus, o Deus Pai e Filho e Espírito Santo, quando ama se dá inteiro. Se Deus é capaz de se dar inteiro, nós podemos concluir - dentro de nossa maneira limitada porque humana - que não sobra nada.
Foi ao pensar que Deus se dá inteiro sem sobrar nada que Francisco e Clara chegaram à conclusão de que Deus é o maior pobre.
Uma conseqüência: Quando damos tudo, ficamos plenamente livres. Como São João chegou à grande afirmação "Deus é o Amor", os Santos Padres chegaram à afirmação: Deus é a Liberdade. Então, Deus não é amoroso, ele é o próprio Amor. Deus não é livre, ele é a própria Liberdade.
Ora, se ele é todo o Amor, sempre que nós amamos vivemos o Deus Amor, partilhamos o seu Amor. Em outras palavras: estamos usando o Amor dele, estamos vivendo o Amor que Ele é. E se ele é toda a Liberdade, quando somos livres partilhamos da sua Liberdade. Em outras palavras: usamos a Liberdade dele, vivemos a Liberdade que Ele é.
Outra conseqüência: Quando o Verbo se fez Carne, esvaziou-se para nos ensinar a amar, esvaziou-se para nos ensinar a ser livres.
Mais uma conseqüência: percebemos melhor porque Francisco não entendia a obediência como um cumprir ordens, mas como um corresponder ao amor recebido. Entendemos por que Clara e Francisco quiseram seguir com tanto amor o Cristo crucificado e pobre: quanto mais eles amavam, mais se tomavam pobres; quanto mais pobres, tornavam-se mais livres. Pobres como Jesus, livres como Jesus.
Foi por isso que eles viveram um esponsal contínuo: um contínuo relacionamento de amor entre a própria pessoa e a pessoa muito concreta de Jesus Cristo.
***
Todos nós somos sedentos de amor, não é verdade? Todos nós somos sedentos de liberdade, não é mesmo? Teremos tudo isso na medida em que vivermos o nosso compromisso pessoal - o nosso compromisso esponsal - com Jesus Cristo. Aquele que se esvaziou para nos salvar.Observemos: Salvar é a mesma coisa que libertar.
Por seu imenso amor a Jesus Cristo, Clara tinha partido da casa de seus pais sem propriedade alguma, totalmente livre depois de ter vendido e distribuído todos os seus bens, para "abraçar o Cristo pobre como uma virgem pobre", como escreveu logo adiante na mesma Carta 2 a Inês de Praga, que fora agraciada pela mesma vocação.
Compreenderemos melhor essa maneira de dizer se nos lembrarmos de que para Clara - nesse ponto discípula de São Bernardo - virgindade era entendida de uma maneira significativamente diferente da nossa. É como se ela dissesse: "Sou tanto mais virgem quanto mais espaço dou dentro de mim para Deus". Sua vida era um correr ao encontro do Cristo pobre como uma virgem pobre. Esse haveria de ser o ponto de chegada; já tinha sido o ponto de partida.
Por essa mesma razão, Clara insiste com Inês, na sua segunda carta, que
"em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira e avance confiante pelo caminho da bem-aventurança" (2Ctln 12).
A decisão de Clara é tão segura que ela tem a ousadia de dizer, logo diante:
"Não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho para não cumprir seus votos ao Altíssimo na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou ... Se alguém lhe disser outra coisa ou sugerir algo diferente, que impeça a sua perfeição ou parecer contrário ao chamado de Deus, mesmo que mereça a sua veneração, não siga o seu conselho. Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre" (2Ctln 14,17-18).
De fato, essa era a recomendação que São Francisco lhe dera pouco antes de morrer, quando lhe enviou a "Última Vontade":
"Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida de pobreza do Altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe e nela perseverar até o fim. Rogo-vos, senhoras minhas, e vos aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza. Guardai-vos bastante de vos afastardes dela de maneira alguma, pelo ensinamento de quem quer que seja (RSC 6,7-9).
Como as outras três, essa segunda carta de Clara a Inês fala da sua 'espiritualidade dos esponsais", ou do caminho de relacionamento pessoal cada vez mais profundo entre a nossa pessoa e a pessoa de Jesus Cristo. Logo no início, Clara saúda Inês como "esposa digníssima de Jesus Cristo" (2Ctln 1-2). Depois recorda sua união "ao rei no tálamo celeste" (2Ctln 5), exortando-a a "olhar, considerar e contemplar o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz" (2Ctln 20). No fim se despede dizendo: "Adeus, irmã querida, senhora minha pelo Senhor que é seu esposo" (2Ctln 24).
Realmente, a nota característica da espiritualidade de Santa Clara é ser uma "espiritualidade dos esponsais", com o mais sólido fundamento nas Sagradas Escrituras, nos Santos Padres e na experiência dos místicos que a precederam, como vamos ver.
"Abraçar o Cristo pobre como uma virgem pobre" vai ser a espinha dorsal do "ponto de partida" da espiritualidade de Santa Clara no estudo aprofundado que queremos fazer.
Para isso, devemos recordar alguns pontos:
Santa Clara nasceu em Assis, na Úmbria, Itália, em 1193 ou 1194 e morreu nessa mesma cidade em 1253. Com São Francisco, fundou a Ordem posteriormente chamada "das Clarissas". É uma santa extraordinária, que esteve durante séculos à sombra de seu conterrâneo mais famoso, mas esta sendo redescoberta como uma grande mestra espiritual desde o final do século XX. Neste nosso trabalho, estamos tentando apresentar - de maneira sucinta, mas bem fundamentada - como podemos entender a sua espiritualidade. Porque, além de ter colaborado validamente para o que sempre se conheceu por espiritualidade franciscana, ela teve valores muito próprios. Tanto que, a partir do século XX, começou-se a dizer que a espiritualidade do movimento franciscano pode ser chamada de espiritualidade francisclariana.
Nós vamos entendê-la à luz do que a Igreja conhece como espiritualidade dos esponsais, falando mesmo em teologia dos esponsais.
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