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domingo, agosto 22, 2010

História e sentido do sacrário na liturgia

 


Atualmente chamamos de Sacrário ou Tabernáculo o local, o receptáculo, onde se deve conservar a Sagrada Eucaristia na Igreja. Seu desenvolvimento e regulamentação pelas autoridades eclesiásticas resultam de um cuidado e devoção fomentados pela Santa Igreja ao longo dos séculos com o intuito de realçar a adoração devida ao Cristo substancialmente presente nas espécies consagradas.


Já nos primeiros séculos da Igreja fazia-se necessário a existência de um receptáculo digno para se guardar a Eucaristia. De início, utilizavam-se pequenos vasos ou caixas chamados de arca ou arcula para guardar a Eucaristia reservada aos doentes e também para os fiéis levarem a Eucaristia para casa, haja vista as eventuais impossibilidades de participações freqüentes na Missa em tempos de perseguição.[1] Nesse sentido, também alguns fiéis usavam a Eucaristia guardada em lenços costurados de linho (oraria) ou vasinhos ou caixas de marfim, prata, ouro, madeira ou argila (encolpia) que eram presos ao pescoço.[2] Tal costume foi, contudo, proibido pela Igreja depois do século IV para evitar-se os abusos, profanações e tratamentos de forma supersticiosa para com o Santíssimo Sacramento (atualmente essa prática também é proibida. Vide a Instrução Redemptionis Sacramentum da Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, n. 132).[3]


Com a liberdade de culto promulgada pelo Imperador Constantino I em 313, os cristãos passaram a construir edifícios próprios para o culto litúrgico (basílicas) e juntamente surgiu o costume de conservar a Eucaristia dentro das basílicas. Além dos casos raros em que o vinho consagrado era mantido em um pequeno vaso de ouro (dolium), o pão consagrado era guardado em pequenos receptáculos de ouro ou prata em formato de torre ou pomba. Estes receptáculos eram inicialmente mantidos no pastophorium (também chamado por alguns escritos da época por sacrarium) que se tratava do lugar mais reservado e inacessível da Igreja.[4] Ou seja, buscava-se custodiar cuidadosamente a Santíssima Eucaristia como a um tesouro. Segundo o Arcebispo Piacenza, “as espécies eucarísticas eram introduzidas na pomba por uma pequena abertura em seu dorso, fechada com cuidado por uma tampa com dobradiça.” Aos poucos, as torres ou pombas passaram a ser colocadas suspensas por correntes no baldaquino (ciborium) que erguia-se por quatro colunas acima do altar.[5]


Por volta do ano 1000, no período da arte românica, surge uma terceira forma de receptáculo, a píxide, uma espécie de caixa decorada. “Normalmente, consistia numa caixa redonda, algumas vezes quadrada, fechada por uma tampa na maioria das vezes cônica, mas também achatada. Justamente por essas características, era de uso muito prático e também de menor custo.”[6] As pombas e torres, contudo, continuaram a ser usadas. A pomba passou a ser mais bem trabalhada artisticamente possuindo muitas vezes um pedestal. Durante o período românico o uso da pomba e da píxide tornou-se bastante comum na França, ao passo que na Itália o mais comum até o século XVI era guardar a Eucaristia em um armário em uma das paredes do presbitério ou no secretarium, uma sacristia. Com o desaparecimento do cibório sobre o altar, apareceram também novas formas de suspender o receptáculo do Santíssimo. A forma mais comum era uma haste em forma de cruz no retábulo em cuja voluta se dependurava o receptáculo.[7] Lembremos que nessa época a palavra sacrarium designava tanto os receptáculos eucarísticos quanto os receptáculos para relíquias de santos e outros objetos sagrados.[8] Hoje usamos “sacrário” para designar especificamente o receptáculo da Sagrada Eucaristia e “relicário” para designar os receptáculos de relíquias de santos.


No período gótico, a partir do século XII aproximadamente, as pombas e píxides passam a ser suspensas acima do altar (por uma haste na parede ou retábulo, ou pelo teto) cobertas por um véu ou um dossel. Também no século XIII encontramos em alguns lugares o costume de por o receptáculo eucarístico sobre o altar.[9] Porém o uso que mais se disseminou na arte gótica foi o de manter o receptáculo em um armarinho ou edícula escavada em uma das paredes laterais do presbitério.[10] Estas eram por vezes chamadas de Sakramenthauz, “Casas do Sacramento”.



Dom Mauro Piacenza descreve minuciosamente a decoração dessas edículas:




“Tinha-se o cuidado, especialmente nas igrejas de certa importância, de enfeitar a porta do armarinho com adornos elegantes e pinturas, emoldurando tudo com um arco agudo sustentado por pequenos pilares revestidos de arcos e encimados por setas. Procurava-se sempre decorar com pinturas tanto o interior quanto a porta do armarinho. Uma abertura circular ou em forma de trevo de três ou quatro folhas, fechada por grades, aberta na parede na altura do interior do armário, permitia aos fiéis que, de fora, adorassem em qualquer tempo o Santíssimo Sacramento. Uma lâmpada acesa diante da abertura indicava, de longe, o lugar em que se conservava o pão transubstanciado. Com o advento do século XVI, já não nos contentamos com esse ornamento, que, mesmo significativo e de certo interesse artístico, é ainda assim um modesto armário. Começam a aparecer as primeiras edículas do Sacramento, que, num primeiro momento - perto do final do século XIV -, foram característica quase exclusiva das igrejas do norte da Europa.”[11]


Estas edículas em muitos lugares adquiriram aspectos de grandes torres que muitas vezes chegavam a tocar o teto da Igreja. Eram as chamadas “torres do Sacramento”. É também no período gótico que surgem os primeiros paralelismos entre o receptáculo eucarístico e o Tabernáculo judaico da Antiga Aliança. Pois a Arca, o Tabernáculo, na Antiga Aliança simbolizavam a Presença de Deus no meio de Seu Povo. Já o Tabernáculo eucarístico continha o Senhor substancialmente presente na Eucaristia.[12] Fica claro na arte gótica o desejo de realçar a majestade do Sacramento da Eucaristia frente às diversas heresias da época que negavam a Presença Real de Nosso Senhor no pão e no vinho consagrados. Também é um reflexo do crescimento das devoções ao Santíssimo Sacramento, suja expressão máxima é a instituição da Solenidade de Corpus Christi na Liturgia pelo Papa Urbano IV em 1264.[13]


A disposição do Tabernáculo eucarístico sobre a mesa do altar, que já encontramos nas Ordinationes de Alexandre IV aos Eremitas de Santo Agostinho no século XIII, se estabelecerá como uma verdadeira tendência a partir do século XVI. A primeira iniciativa nesse sentido foi tomada por Gian Mateo Giberti, bispo de Verona, que buscou implantar o tabernáculo sobre a mesa do altar-mor em toda a sua diocese. Giberti construiu um novo altar-mor em sua catedral na qual o tabernáculo figurava no centro, sobre a mesa do altar.[14] Um biógrafo do dito bispo assim descreveu tal disposição do tabernáculo na igreja: tanquam cor in pectore et mentem in anima (“tal como o coração no peito e a mente na alma”).[15] São Carlos Borromeo, Cardeal-Arcebispo de Milão reformou o altar-mor de sua catedral, retirando o antigo retábulo) e colocando sobre a mesa do altar-mor um Tabernáculo para guardar a Eucaristia, antes custodiada na sacristia da dita catedral.[16] Apesar da divulgação de Borromeo e da imposição do Ritual do Papa Paulo V (1614) para a diocese de Roma, vários concílios deixaram liberdade de escolha para as dioceses sob qual modelo de receptáculo eucarístico adotar. Na maioria dos lugares da Itália continuou-se a usar tabernáculos de parede ou edículas eucarísticas[17] (na França até o século XVIII era comum ainda o costume de manter uma píxide suspensa acima do altar-mor e na Bélgica e Alemanha mantiveram-se o uso das Sakramenthauz até meados do século XIX)[18] . Em Roma, a maioria das igrejas barrocas (Gesú, San Ignacio) bem como as Basílicas maiores (reformadas durante a Renascença e o Barroco) cultivou o uso de uma Capela lateral específica com um altar para sustentar o tabernáculo onde se conservavam as santas espécies.






Dom Mauro Piacenza explica esse novo destaque ao local do Santíssimo na Igreja, forma de reafirmar a doutrina eucarística da Igreja contra as novas heresias protestantes:




“Como se sabe, aqueles eram os anos da aplicação das normas do Concílio de Trento (1545-1563), que, nesse caso, reagia à doutrina protestante que negava a permanência da presença real de Cristo nas espécies eucarísticas. Deve-se à exigência de afirmar a doutrina católica a difusão do posicionamento do tabernáculo, bem visível, sobre o altar maior. A forma mais comum era a pequena casa, incorporada à parte elevada do altar, ladeada por degraus (habitualmente dispostos em três níveis) sobre os quais eram postos castiçais para a ascensão de sírios, às vezes numerosos, sobretudo por ocasião das exposições eucarísticas solenes. Assim, a mesa se tornou, visivelmente, quase uma parte menor do altar, cada vez mais monumental, no qual foi dado grande desenvolvimento artístico a cruzes, castiçais, bustos-relicários ou estátuas de santos e de anjos, grandes retábulos, etc. No século XVIII, as obras mais
apreciadas eram as portinholas dos tabernáculos, em metais e pedras preciosas.”[19]




Foi durante o período barroco, entre os séculos XVII e XVIII, que o tabernáculo junto ao altar-mor começou a se difundir de maneira mais intensa. Prova disso é que o Papa Bento XIV em sua constituição Accepimus de 1746 declarava essa disposição de receptáculo eucarístico como “disciplina vigente”.[20] Em 1863 a Sagrada Congregação dos Ritos vetava qualquer outra forma de receptáculo além do tabernáculo de altar.[21] A prática do século XIX até a movimento litúrgico do século XX restringia o uso de altares-mor sem Sacrário somente para as igrejas Catedrais, Basílicas e Colegiatas, conforme determinava o Cerimoniale aepiscoporum vigente na época. Isto para que pudessem celebrar-se mais comodamente as cerimônias litúrgicas solenes, mais comuns nessas igrejas maiores, dispondo assim uma capela específica para o Santíssimo para que os fiéis pudessem melhor adorar e exercitar suas práticas devocionais. [22]












As normas litúrgicas atuais da Igreja dispõem o seguinte acerca do Sacrário ou Tabernáculo:


“«De acordo com a estrutura de cada igreja e os legítimos costumes de cada lugar, o Santíssimo Sacramento será guardado em um sacrário, na parte mais nobre da igreja, mais insigne, mais destacada, mais convenientemente adornada» e também, pela tranqüilidade do lugar, «apropriado para a oração», com espaço diante do sacrário, assim com suficientes bancos ou assentos e genuflexórios. Atenda-se diligentemente, além disso, a todas as prescrições dos livros litúrgicos e às normas do direito, especialmente para evitar o perigo de profanação.” (Redemp. Sacr. n. 130)[23]


O sentido de o Sacrário ter um posto de destaque na configuração arquitetônica da Igreja é explicada pela mesma Instrução Redemptionis Sacramentum (n. 129): favorecer a adoração e o culto de latria ao Cristo Eucarístico em todos os momentos, mesmo fora da Santa Missa, além da finalidade prática de custodiar as Hóstias destinadas à comunhão dos enfermos e outros incapacitados de participarem da celebração da Santa Missa.[24]


Refletindo encima desses princípios, de que a localização do receptáculo eucarístico deve estar localizado de tal forma que possa ser reconhecido individualmente por todos os fiéis, o Papa Bento XVI recorda a importância da lâmpada perenemente acesa junto ao sacrário para recordar a Presença do Senhor e pondera as seguintes considerações:
“Tendo em vista tal objetivo, é preciso considerar a disposição arquitectónica do edifício sagrado: nas igrejas, onde não existe a capela do Santíssimo Sacramento mas perdura o altar-mor com o sacrário, convém continuar a valer-se de tal estrutura para a conservação e adoração da Eucaristia, evitando porém colocar a cadeira do celebrante na sua frente. Nas novas igrejas, bom seria predispor a capela do Santíssimo nas proximidades do presbitério; onde isso não for possível, é preferível colocar o sacrário no presbitério, em lugar suficientemente elevado, no centro do fecho absidal ou então noutro ponto onde fique de igual modo bem visível. Estas precauções concorrem para conferir dignidade ao sacrário que deve ser cuidado sempre também sob o perfil artístico. Obviamente, é necessário ter em conta também o que diz a propósito a Instrução Geral do Missal Romano. Em todo o caso, o juízo último sobre esta matéria compete ao bispo diocesano. (Sacr. Car., n. 69)”[25]
Como se pode ver, o Santo Padre enumera 3 possibilidades:
1) Continuar usando o Sacrário do altar antigo junto à parede;
2) Construir uma Capela própria para o Santíssimo Sacramento;
3) Dispor o Sacrário em um local visível, de preferência no fecho absidal.
Das três formas a opção 2 é bastante comum na construção de novas igrejas e inclusive é a recomendada preferencialmente pelo Arcebispo Mauro Piacenza. Contudo, ao escolher essa opção deve-se observar duas coisas: a Capela do Santíssimo deve ser um lugar de destaque e de fácil acesso aos fiéis e deve proporcionar um ambiente digno que transmita uma atmosfera de sacralidade propícia à oração, meditação e adoração. Em muitas construções recentes, influenciados por um liturgicismo desordenado, a Capela eucarística acaba se tornando uma forma de “esconder” o Santíssimo dos fiéis (pois estes liturgicistas erroneamente crêem que devoção pessoal e prática litúrgica se antagonizam). Tal situação acaba gerando também alguns sacrários de gosto duvidoso, com materiais e formas indecorosas e contrárias à tradição iconográfica da Igreja.
A primeira e a terceira opção são semelhantes. Os fiéis já estão familiarizados com a presença do Sacrário no centro do fecho absidal, mesmo que não esteja sobre um antigo altar, ele ainda adquire um destaque latente no edifício. Há contudo de se cuidar para que Altar e Sacrário formem um conjunto harmonioso no presbitério. Este modelo de dispor o Sacrário no centro do fecho absidal é utilizado, por exemplo, pela Abadia beneditina de Le Barroux na França e pela Catedral de São Paulo em Birmingham, Alabama, nos Estados Unidos. Outra opção nesse caso seria também construir sacrários artisticamente trabalhados na parede do presbitério, inspirando-se nos modelos góticos da Basílica de São Clemente em Roma (que ainda está em uso) ou nos Sakramenthauz alemães (contudo levando-se em conta as normas vigentes da Igreja quanto aos materiais a serem utilizados na confecção do Tabernáculo). Já as antigas formas de pomba ou píxide estão certamente descartadas, haja vista serem pequenas demais para ocuparem a posição de destaque e visibilidade exigida pelas atuais normas litúrgicas.


Como a Liturgia desenvolve-se em continuidade e não em ruptura com a Tradição, podemos refletir a partir das práticas tradicionalmente usadas. Podemos partir de um princípio semelhante ao antigo Cerimonial dos Bispos: em paróquias de vida menos tumultuada, onde não haja grande concurso de pessoas, disponha-se o Sacrário sobre o altar ou no fecho absidal de forma que fique suficientemente visível a todos os fiéis. Nas igrejas onde haja grande concurso de pessoas ou grande quantidade de Ofícios solenes (igrejas turísticas, Basílicas, Catedrais, Colegiatas, Santuários, grandes Abadias, etc) disponha-se o Santíssimo em uma Capela própria para favorecer um ambiente mais calmo de oração para os fiéis. Esta é a forma adotada, por exemplo, nas Basílicas maiores de Roma e funciona muito bem. Estas basílicas recebem freqüentemente grande número de turistas, mas na Capela do Santíssimo só se entra para oração e isto propicia aos fiéis momentos de oração na dita igreja sem serem importunados pela movimentação de turistas no restante do edifício.


Por fim, vimos que dado as normas vigentes na Igreja, há 3 possibilidades de se dispor o Sacrário na Igreja. Os responsáveis pela construção ou reforma dos edifícios dedicados ao culto devem portanto levar em conta as circunstâncias ao julgarem qual das 3 formas será a mais adequada para cada caso. O que não se deve perder de vista é o destaque que deve-se dar ao Santíssimo na Igreja: deve ser um ponto de referência para os fiéis, um lugar de decoro e sacralidade, que demonstre e testemunhe sensivelmente a Presença de Nosso Senhor nas espécies consagradas, para que possam os fiéis tributar ao Senhor presente neste Augusto Sacramento a devida adoração.

Notas de Referência:

[1]Interessante o relato de um rito de comunhão privada que pela sua forma de adoração e reverência contrasta com a abusiva comunhão “self-service” de nossos tempos: “O cardeal Bona, em seu Rerum liturgicarum, no nº 17, cita o texto das disposições emitidas por um bispo de Corinto, que permitem conhecer o rito de uma comunhão doméstica. “Se vossa casa for dotada de um oratório, depositareis sobre o altar o vaso que contém a Eucaristia. Se faltar o oratório, sobre uma mesa decente. Estendereis um pequeno véu sobre a mesa e lá depositareis as sagradas partículas; queimareis alguns grãos de incenso e cantareis o trisagion [o nosso Sanctus, ndr.] e o Símbolo; então, depois de terdes feito as genuflexões, em sinal de adoração, absorvereis religiosamente o Corpo de Jesus Cristo”.

[24]“«A celebração da Eucaristia no Sacrifício da Missa é, verdadeiramente, a origem e o fim do culto que se lhe tributa fora da Missa. As sagradas espécies se reservam depois da Missa, principalmente com o objeto de que os fiéis que não podem estar presentes à Missa, especialmente os enfermos e os de avançada idade, possam unir-se a Cristo e ao seu Sacrifício, que se imola na Missa, pela Comunhão sacramental». Além disso, esta conservação permite também a prática de tributar adoração a este grande Sacramento, com o culto de latria, que se deve a Deus. Portanto, é necessário que se promovam vivamente aquelas formas de culto e adoração, não só privada mas sim também pública e comunitária, instituídas ou aprovadas pela mesma Igreja.”

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